segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Pequeno dicionário amoroso

A - Assiralc, substantivo feminino próprio. 1. Meu nome ao contrário.
Quando eu era pequena, tinha bastante tempo para me divertir explorando as coisas de vários ângulos, inclusive do avesso. Entrava no guarda-roupa e o olhava por dentro: as dobradiças da porta com restos de cola, os cantinhos, o cheiro de dentro. Virava meu nome. Desenhava retratos fiéis só da minha mão, depois de transferir seu contorno para um papel sulfite, preenchendo-o de detalhes como os poros das falanges, seus pelinhos muito finos e as linhas das juntas -- que, no fundo, eram as dobradiças dos dedos. Assim como Assiralc seria meu nome escrito se alguém olhasse por baixo do bordado.

B - Bertioga, substantivo feminino próprio. 1. Cidade balneário do litoral norte de São Paulo. 2. Vila de Bertioga; bairro central da cidade. 3. metonímia: casa onde passávamos as férias.
Tento manter viva a memória de Bertioga porque é o lugar que conheço há mais tempo na vida. A cidade já não é aquela que eu conheço, mas é a cidade onde nasceram meus pais e tios, e minha parenta mais velha ainda viva, a tia de meu pai, Ana. Eu achava que talvez desse para ver a África depois do mar de Bertioga. E que tinha fantasmas morando no Forte. E que a caixa d'água, uma grande construção de concreto no fundo do quintal, era um palquinho para cantar e dançar com panos de chão enrolados no corpo, presos com pregadores, e uma vassoura à guisa de microfone.

C - costa, substantivo feminino. 1. Parte de trás do tronco.
O João Paulo, como todo mundo, aprendeu a falar construindo sua própria hipótese sobre as coisas e as palavras. Eu ficava confortavelmente sentada em minha própria construção, só olhando e me divertindo. Ele calculava que 'costas', naturalmente, era um plural, de forma que só se aplicava a duas partes de trás do tronco de uma pessoa. Logo, quando ele se referia às próprias costas, falava no singular: "Mãe, tá doendo a minha costa" ou "Tata, tem um bicho na minha costa?". Eu morria de rir. De vez em quando, eu saía do meu sólido castelinho de hipóteses já construídas e ia brincar no quintal dele. Dizia: Paulo, como chama a mulher do bonitão? E ele: bonitona. E do grandão? Ele: grandona. E do anão? Ele: anona. E eu morria de rir de novo.

Não sei se ele achava muita graça.