terça-feira, 22 de março de 2011

Holding back the years

Hoje eu encontrei todas as figuras da minha infância penduradas no Museu de Arte de São Paulo: o Escolar, Suzanne Bloch, a bailarina Loïe Fuller, o lavrador de café, as moças de Guaratinguetá e Leopold Zborowski, que inclusive eu achava muito parecido com um namorado da minha tia mais velha cujo nome me foge agora.

Pode parecer que eu fui educada por preceptores, entre o apartamento de Paris e a casa de campo da Suíça.

Mas a verdade é apenas que meus pais me deram de presente um jogo chamado "Leilão de Arte", e ele foi muito jogado no sobradinho do bairro Assunção, no máximo em Bertioga, os limites da minha infância de subúrbio e de mar.


Eu sempre achei o Escolar perturbado. Hoje eu descobri que ele era funcionário de um sanatório. Isso explica um bocado


Reencontrei a Loïe lançando suas pernas no estupor do can-can


E este era o namorado da minha tia, gente

Há limites

Quando eu era pequena e passava as férias na praia, às vezes todo mundo tinha preguiça e ficava acertado que teria bauruzinho de jantar. Aquele lanche de pão de forma com presunto, queijo e tomate, um clássico das casas de praia de todo o Brasil.


Então minha mãe comprava meio quilo de presunto, meio quilo de queijo e três pacotes de pão de forma. E aquilo tinha que virar bauruzinho para os 523 primos que estavam ali na casa de praia, jogando Jogo da Vida ou Rouba Monte ou zanzando em volta da casa, pelos corredores do quintalzão.


Logo, cada lanche levava tão somente uma fatia de presunto. Uma única, contada fatia, senão o presunto acabava antes. (E, se o presunto acabasse antes, faziam-se os lanches apenas com queijo).


Hoje eu ainda hesito ao estender a mão rumo a uma segunda fatia de peito de peru quando faço um lanche para o meu café da manhã. Porque este é o tipo de coisa que forja o caráter, dividir o presunto com 522 primos.


* * *


Minha mãe, por sua vez, quando era pequena, só comia apresuntado. E olhe lá.


* * *


A Lara não gostou muito do carpaccio que ela experimentou hoje, pela primeira vez, no restaurante tipo buffet aqui perto.


(Em compensação, adorou os chips de abobrinha e o tiramisú de rapadura).


Quando ela quis voltar a se servir e eu disse para ela usar o mesmo prato, ela comeu todo o carpaccio que estava no cantinho, sem reclamar.


Está forjando o caráter.


* * *


Fazer coisas que a gente não gosta forja o caráter. Mesmo que seja pelo prazer de se livrar delas quando a gente cresce.


Como colocar duas, às vezes três fatias de peito de peru no sanduíche das manhãs e se sentir feliz com isso.

* * *


O Arcade Fire não é uma bad hair band?

Ainda bem que eles não precisam ser mais uns rostinhos bonitos na multidão.

* * *

Only Dean has the magic technique.


segunda-feira, 14 de março de 2011

San Andreas Fault

"Go west, paradise is there"
-- San Andreas Fault, Natalie Merchant

Um dia minha mãe assistiu a um documentário sobre a Falha de San Andreas e ficou, como posso dizer?, fascinada.

Tão fascinada que me contou tudo a respeito.

Eu fiquei mais maluca ainda quando soube que existia uma rachadura especial sob a Terra. Como um pontilhado. E que todos esperavam que, um dia, este pontilhado se destacasse de vez. Esperam, ainda.

E eu ainda acho isso estranhamente aceitável e maluco.



* * *

Os temas de interesse da minha mãe são, como posso dizer?, um pouco como terremotos.

Ela se interessa (ou já se interessou) por coisas tão diversas quanto gnomos, tradições gaúchas e a série "Jornada nas Estrelas".

Eles vêm, sacodem a vida dela, botam algumas coisas para sempre em lugares diferentes e se vão.



quarta-feira, 9 de março de 2011

A completa desconhecida

"Stop telling the same story"
-- Ziggy Marley, Tomorrow People

Eu queria um grooveshark em que a gente digitasse "músicas da praia" e ele tocasse "Tomorrow People", "Corações Psicodélicos" e outras músicas que me lembram as tardes de chuva ou de sol em todos aqueles anos de Bertioga.

* * *

Um dia minha tia mais nova saiu para ir à padaria. Caiu a maior chuva e ela voltou para casa dividindo o seu próprio guarda-chuva com uma completa estranha. Só estávamos eu e minha tia mais velha em casa.

Ela parou na porta com aquela perfeita desconhecida ao lado e falou: "adivinhem quem eu encontrei na padaria?".

E eu pensei: "eu devia conhecer esta mulher?".

E minha tia mais velha ficou sem fala.

Como as crianças sabem que quase nunca estão por dentro do que acontece no mundo dos adultos, logo dei de ombros. Minha tia trouxe uma desconhecida em casa, mas tudo bem. Talvez eu esteja perdendo uma parte da história e, de alguma forma, isso é normal.

Aí a mulher foi tomar banho. E minha tia mais velha ficou no corredor, falando baixinho e fazendo caretas para a minha tia mais nova: "bom, agora ela está colocando todas as coisas de valor na bolsa".

E eu pensei: "mas o que ela pode roubar do banheiro? Sabonetes?"

Acho que minha tia mais velha falava mais para torturar a mais nova, recriminando a cabecice-de-vento da irmã caçula. Porque ninguém pode roubar algo de valor de um... banheiro.

(Tirando algum ladrão que entrasse no castelo daquele rei da França que mantinha a Mona Lisa no banheiro).

Minha tia mais nova era cabeça-de-vento e coração-de-ouro. Conheceu a mulher na padaria, deu carona para ela no guarda-chuva e, por alguma razão, se compadeceu dela e convidou-a para tomar banho em casa.

A mulher desconhecida aceitou a generosidade, tomou banho, foi embora e todos os sabonetes continuaram lá.

Minhas tias provavelmente nem se lembram desta história. E talvez ela nem tenha acontecido mesmo.

A gente preenche o passado com impressões e imaginação, e depois não sabe mais o que é cada qual.

sexta-feira, 4 de março de 2011

A memória vívida do Carnaval

"Tem xinxim e acarajé,
Tamborim e samba no pé"
-- Samba-enredo da Mangueira, 1986

Se tenho uma memória vívida do sobrado do bairro Assunção, além das almofadas estampadas em círculos com verde de vários tons, ornando com a cortina, é que dia e noite, naquela casa, tocava o disco dos sambas-enredo do ano.

Dia e noite não. Noite só, que era quando meu pai chegava em casa. E os discos eram dele.

Às vezes a gente afastava as almofadas em vários tons de verde e a cadeira de balanço de vime e ficava dançando na sala.

E aí, naquela casa de um subúrbio paulista, eu virei uma torcedora fiel da Estação Primeira de Mangueira.

E desenhava com canetinha verde e rosa as saias da porta-bandeira.



- Para o meu pai.