terça-feira, 11 de maio de 2010

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Regozijar-se é um verbo que só existe na Bíblia. Ninguém se regozija nas ruas, diariamente, no cotidiano. Só aqueles vindos de uma longa linhagem, que provavelmente vai dar em Davi, se regozijam.

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Hoje eu estava dentro do 856-R, sentadinha no banco solitário, com destino ao trabalho, comendo um pastel de escarola, olhando para a biblioteca da Henrique Schaumann através da Praça John Graz, quando de repente pensei naquela pergunta sensacional que fizeram para a minha amiga Losso:
- Você é menino ou menina?

Já me perguntaram muita coisa, mas ninguém nunca me perguntou isso.

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Pensando bem: você sai do trabalho, apanha o crachá dentro da bolsa, aproveita para pegar o bilhete único, deixa um em cada bolso, *não* passa o bilhete único na catraca da empresa, ganha a rua observando os degraus, olha para um lado para atravessar (a rua é mão única), olha para o outro por via das dúvidas (porque uma vez quase foi atropelada por um manobrista de ré), desenrola o fio do fone de ouvido enquanto separa um cigarro, calcula o trabalho que vai dar o jantar, lista mentalmente o que precisa comprar no mercado antes de ir para casa, lembra que uma das três linhas possíveis para o caminho de volta está descartada (porque você tem que passar no mercado), encontra uma posição boa no ponto de ônibus (porque está fumando e não quer incomodar a geral), *não* passa o crachá na catraca do ônibus, decora o número de itens para comprar no mercado como forma de *não* se esquecer o que tem que comprar, muda de música enquanto manda um SMS, lembra daquela vez em que recebeu um SMS de um completo desconhecido que te chamava de 'Raposinha', fica tensa porque talvez tenha mandado o SMS para a pessoa errada, checa a caixa de saída do celular, desce no ponto do mercado, *não* pisa nas manchas deixadas pelos cachorros, acerta a força do passo porque a calçada é irregular, se sente culpada porque nunca deixou um cobertor um prato de sopa ou cinquenta centavos para os mendigos, se vê refletida na câmera de segurança do mercado e apanha a cestinha. E a noite nem começou.

Aí neguinho tem um derrame - ou menos: recebe qualquer outro tipo de sinal levemente irregular do cérebro (tipo "putz, esqueci a palavra!") - e acha que a cabeça não funciona mais.