quinta-feira, 22 de setembro de 2011

As coisas da Lu

A Lu é tão gozada.

Ela me deixa um bilhete assim:

"COMPRAR

removedor da tampa rosa
sabão em pó
detergente
água sanitária"

Eu suponho que removedor da tampa rosa seja vanish.

Será que ela está usando como removedor de manchas nas roupas ou apenas como removedor mesmo?

* * *

Ela enfileira sobre o gaveteiro todos os remédios e cremes que eu largo no criado mudo. Um exatamente atrás do outro, mais ou menos por ordem de tamanho. Fica assim: um colírio, um vidrinho de passiflora, o creme antiolheiras, o spray de própolis, o rinossoro, o hidratante para mãos, o hidratante do rosto, o hidratante do corpo.

Por alguma razão que me é absolutamente misteriosa, a caixinha de música que eu ganhei da mulher do meu sogro (e que toca o tema de Cabaret) lidera a estranha parada dos itens de cabeceira.

The weird parade

* * *

Eu tenho um bonequinho de pano naquele estilo toy-art-ugly-doll que mora em cima do microondas.

Ele fica ali porque um dia já foi um chaveiro, presente do Guss. E o lugar das chaves, lá em casa, é em cima do microondas, então ali ele pode continuar a desempenhar, de certa forma, sua função original.

Como toda figura toy-arte-ugly-doll, ele tem uma cabeça maior que o corpinho, um formato meio estranho e olhos costurados de botão. E a Lu, invariavelmente, vira ele de ponta-cabeça todas as terças.

Quando eu chego, o monstrinho está assim:


Eu vou lá e desviro o coitado:


Mas, na terça-feira que vem, eu já sei que ele vai estar de ponta-cabeça de novo, que nem um Santo Antônio. E eu vou desvirar. E a Lu vai virar de novo. E eu vou me esquecer de dizer "Lu, esse bonequinho é assim mesmo!". E nossa vida vai seguir assim, todas as terças-feiras.


terça-feira, 13 de setembro de 2011

Xenofilia

"Aqui e lá há lacunas
Mas não há lá Iracemas"
-- Itamar Assumpção, Banzo

150 anos é tempo, seis horas é uma viagem curtinha. Isso se você é americano -- americano como todo mundo que nasce nas Américas, não só os estadunidenses.

Para um britânico, seis horas é longe. E 150 anos foi semana passada.

"Em seis horas daria para chegar na Rússia!", me explicou, indignado, o engenheiro britânico, esclarecendo porque achava Curitiba longe de São Paulo.

Ele, que passou o último Carnaval vestido numa alegoria cinza desfilando para uma escola da quarta divisão de Madureira, no Rio.

Que coisa linda é o Brasil.

* * *

Meu colega de classe suíço colou em mim depois da aula, nas escadas estreitinhas do prédio que abrigava a escola em Gloucester Road.

"What are you doing this afternoon?", perguntou, os erres levemente dobrados. Ele era suíço-italiano, o Alessandro.

Eu ia a um bar em Camden assistir a um espetáculo de slam poetry da minha amiga Roberta, às 18h. Convidei, deixei meu celular com ele e disse "se for, me avisa".

18h15, estou saindo de casa rumo ao bar. Chega um SMS do Alessandro: "acha que ainda dá tempo de eu ir?". Eu ri: "claro, vai pra lá, estou a caminho".

10 minutos depois ele já estava lá, me mandando torpedos. Onde já se viu? "Cheguei, tem picanha no menu!". E eu no metrô.

O menino conseguiu chegar antes de mim mesma na minha própria balada.

Entrei no bar meia hora depois dele. Aí lembrei: claro, ele é suíço. Fui distraída pelo sotaque italiano.

A apresentação começou quase às 21h.

* * *

A Irina era russa, devia ter por volta de uns 50, divorciada e com dois filhos em universidades inglesas, estudando Psicologia.

Ela era minha conversation partner naquelas semanas de junho. A gente tinha que conversar sobre as coisas mais diversas, tudo dentro das propostas mais ou menos surreais do material didático.

Um dia ela me contou sobre a Victoria, uma amiga que ela teve aos seis ou sete anos.

A Irina admirava muito a coragem tresloucada da Victoria, que aprendeu a andar de bicicleta em menos de uma semana porque não tinha medo de se arrebentar nos arbustos lá embaixo da ladeira onde elas praticavam.

Elas aprendiam levando a bicicleta até o alto da ladeira, montando e tentando descer.

Eu perguntei: "mas e as rodinhas?"

E a Irina: "que rodinhas?"

E eu: "aquelas rodinhas de apoio, que geralmente as crianças usam para aprender a andar de bicicleta".

E ela: "não existiam bicicletas assim na Rússia".

It's a hard knock life

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Enquanto o mundo cai

"But passion most dissembles, yet betrays
Even by its darkness; as the blackest sky
Foretells the heaviest tempest"
-- Lord Byron, em "Don Juan"

Quando eu tinha 8 anos, assisti "Labirinto - A Magia do Tempo" e fiquei apaixonada pelo David Bowie, mesmo sem saber quem era o David Bowie.

Muito magnético, ele como Rei dos Duendes.

Depois, apareceu em casa uma fita K7 intitulada "Românticas (com eco)". Não sei onde meus pais arrumavam essas coisas.

A primeira música era "As the World Falls Down". Com eco, naturalmente.

Eu ficava ouvindo, rebobinando e ouvindo de novo, sem parar. Descobri que se jogasse a equalização para um caixa só, mesmo sem saber o que era equalização, a música ficava melhor.

E imaginava cenas das quais eu adoraria me lembrar melhor. Mas acho que envolviam o Rei dos Duendes ou o Peixinho, o menino mais bonito da escola; corridas em câmera lenta por campinas verdejantes e um castelo. Tudo na contraluz.

* * *

Quando eu tinha 3 anos, minha mãe me levou ao teatro para assistir a uma montagem da fábula "A Cigarra e a Formiga".

Eu fiquei apaixonada pela Cigarra.

Quando ela morreu, eu chorei. E não parei mais.

Não adiantou nada minha mãe explicar que a Cigarra não tinha morrido, que era só faz-de-conta e o moço estava vivo lá atrás do palco.

Ela me levou às coxias para provar que estava falando a verdade. Aí eu vi que o moço estava vivo mesmo, ele sorriu e fez festinha na minha bochecha e falou "tá tudo bem, viu?".

Mas ele não era a Cigarra. Era só um impostor com as roupas dela.

Ela tinha morrido mesmo.


sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Ponteiros

She dreams in color, she dreams in red
-- Pearl Jam, Better man

Depois de 13 anos com um IMC que qualquer criatura decente classificaria como pífio, esta é a primeira vez em que as partes internas das minhas coxas se encontram em pelo menos um ponto, bem em cima, quando fico em pé com as pernas juntas.

Antes, quando eu ficava em pé com as pernas juntas, elas formavam um vácuo pelo qual era possível ver a vida passando, as crianças brincando no parquinho, etc. Pernas finas e tortas.

Quando a gente tinha uns 15 anos e passava as férias na praia, as coxas da Tati juntavam perfeitamente. Ela achava um saco, dizia que dava alergia por causa do calor, de ficar de biquíni o dia inteiro com as pernas relando.

Eu adoraria ter tido pernas relando nesta época. Mas agora está bom também.

Passei de um IMC "pífio" para "risível", apenas.

Se eu chegar aos 50 quilos, vou correndo doar sangue antes que o ponteiro -- imaginário, porque estas balanças nem existem mais -- caia de novo.

terça-feira, 6 de setembro de 2011

60/90

Um dia eu tava no 775 F-10 e tinha um bêbado no banco do fundo.

Toda vez que o ônibus parava no ponto, ele puxava um corinho:

"Por que parou? Parou por quê? Por que parou? Parou por quwajfas ah ah ah (risada de bêbado)".

Ninguém deu confiança.

* * *

Minha adolescência, nos anos 90, foi vivida nos anos 60.

Teve "Anos Incríveis", teve "Forrest Gump", teve "Diana" do Paul Anka e "Never Can Tell" com o Chuck Berry, da trilha sonora do "Pulp Fiction".

Teve um revival hippie, teve Black Crowes e a Mariah de blusinha de crochê no videoclipe de "Heartbreaker".

Tinha Alpha Memory todo dia de manhã, com "My Pledge of Love".

Eram os meus anos incríveis particulares. Paz, amor (platônico) e Gudang Garam. Oh, please, stand by me. Longas tardes esperando o telefone tocar. Longas noites esperando o sol nascer.

Não quero voltar, nunca quis.

Mas às vezes tenho muitas saudades.

domingo, 4 de setembro de 2011

If you can believe your eyes and ears

If you had such a dream
would you get up and do the things you’ve been dreaming
?
-- Belle & Sebastian, I Could Be Dreaming

Lavei o rosto, ajeitei o cabelo, escovei os dentes. Corri para a cozinha para deixar o café passando. A cafeteira estava suja, tive que lavar (nunca mais deixo a cafeteira suja de véspera). Acendi o fogo com fósforo, a ignição não funcionou.

Voltei pro quarto. Telefonei para a Ceretti, ela podia ir me seguindo de bicicleta. Vesti uma roupa. Não gostei. Corri até a lavanderia e peguei outra calça. Não vai dar tempo de maquiar. Lembrei que precisava por gasolina no carro. Senão não chego.

Tomei o café, mastiguei alguma coisa. Chamei o elevador enquanto trancava a porta. Tirei o carro da garagem tão rápido que nem me lembro. Encostei no posto, "põe 50 de álcool, por favor?".

E aí acordei.

Odeio perder a hora quando já estava quase lá.

E, pior ainda, eu não ia ver a Ceretti.

* * *

Ontem aconteceu uma coisa que eu achei que não ia viver para ver: conheci o apartamento do Dener. Do Dener mesmo, onde ele vai morar/está morando sozinho.

Levei uma peça de peito de peru. Daqueles pequeninos, para lanche, embalados a vácuo. Para ele cortar as fatias de cinco dedos de espessura, que ele tanto gosta, e comer puro, como ele fez tantas vezes nas casas alheias.

Levei um baleiro cheio de 7 Belo e Bolete, duas das poucas coisas verdadeiramente boas e baratas da vida.

E uma cesta com danoninho de potão (porque ele já é grande), flan e danete branco. Porque agora ele pode encher a geladeira da casa dele com todas as delícias que a gente sempre sonha comprar no mercado quando a gente for morar sozinho.

Com novos amigos na sala, contamos mais uma vez a história de quando ele foi assediado pelo enfermeiro afrescalhado no PS de Mongaguá.

Fiquei pensando se sonhamos essa história, de tão boa que ela é. Mas acho que sonhamos quase nossa adolescência toda, e sei que sou loucamente privilegiada de ainda ver e amar as pessoas que sonharam comigo.
As coisas boas e baratas da vida